“Existirmos, a que será que se destina?/Pois quando tu me deste a rosa pequenina/Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina/Do menino infeliz não se nos ilumina”.
O Brasil conhece bem esses versos. São os que abrem Cajuína, de Caetano Veloso. Esse xote belíssimo está no álbum Cinema Transcendental, de 1979, e tem a sanfona de Dominguinhos a ampliar a melancolia que há na canção.
O que muita gente não sabe é que Caetano Veloso compôs Cajuína durante uma turnê, depois de ser recebido em Teresina pelo pai de Torquato Neto.
Torquato Neto se matou em 10 de novembro de 1972, um dia depois de ter completado 28 anos. Se estivesse vivo, teria feito 80 no sábado, nove de novembro de 2024.
Torquato Neto nasceu no Piauí no dia nove de novembro de 1944. De Teresina, foi para Salvador, onde conheceu Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia. Em seguida, se estabeleceu no Rio de Janeiro.
Na capa do LP Tropicália (1968), que é o manifesto do movimento tropicalista, Torquato Neto está sentado ao lado de Gal Costa na mesma fila em que estão o maestro Rogério Duprat (com um penico na mão) e Caetano Veloso (com o retrato de Nara Leão).
Quando penso no grupo tropicalista, sempre me ocorre que – se é válida a distinção – há dois integrantes que são mais poetas do que letristas de canção popular. Um deles é o baiano José Carlos Capinan. O outro é o piauiense Torquato Neto.
No manifesto do Tropicalismo, é Gilberto Gil que canta: “Um poeta desfolha a bandeira/E a manhã tropical se inicia/Resplandente, cadente, fagueira/Num calor girassol com alegria/Na geleia geral brasileira/Que o Jornal do Brasil anuncia”.
São os primeiros versos de Geleia Geral, que mistura bumba meu boi com iê-iê-iê, baião com rock. A melodia é de Gil. A letra é de Torquato Neto.
“Minha terra tem palmeiras/Onde sopra o vento forte/Da fome, do medo e muito/Principalmente da morte”. Isso aí é Marginália II, música de Gil, letra de Torquato.
Marginália II dá conta do Brasil de 1968, ano em que foi gravada e, ainda tão atual, está no repertório do show que Caetano Veloso e Maria Bethânia fazem agora em 2024.
Torquato Neto viveu muito pouco e, naturalmente, não deixou uma obra tão extensa no cancioneiro popular brasileiro. Mas o que fez é extremamente significativo.
Há um CD do selo Dubas que revisita músicas cujas letras foram escritas por Torquato Neto. O disco se chama Todo Dia é Dia D e traz gravações de Gilberto Gil, Gal Costa, Elis Regina, Nara Leão, Edu Lobo, Maria Bethânia, Jards Macalé e Luiz Melodia.
Lembro de Torquato parceiro de Caetano Veloso em Mamãe Coragem: “Eu tenho um beijo preso na garganta/Eu tenho um jeito de quem não se espanta/Braço de ouro vale dez milhões/Eu tenho corações fora do peito/Mamãe, mamãe não chore, não tem jeito”.
Também lembro de Torquato Neto parceiro de Jards Macalé em Let’s Play That: “Eis que esse anjo me disse/Apertando minha mão/Com um sorriso entre dentes/Vai bicho desafinar/O coro dos contentes/Vai bicho desafinar/O coro dos contentes”.
Torquato Neto foi parceiro de Edu Lobo em Pra Dizer Adeus, que Edu gravou com Bethânia: “Vem/Eu só sei dizer/Vem/Nem que seja só/Pra dizer adeus”.
Torquato Neto era uma presença da contracultura dentro do movimento tropicalista. Muitos versos dele estão na minha memória afetiva. Permaneço impactado pelo refrão de Marginália II: “Aqui é o fim do mundo/Aqui é o fim do mundo/Aqui é o fim do mundo”.
Torquato Neto escreveu sobre o Brasil da segunda metade da década de 1960, começo da de 1970. Os versos dele que ouvimos no cancioneiro popular estão aí, atravessam o tempo. São fortes, belos e perenes.