A segunda e última parte da série sobre concurso de crimes aborda a aplicação do instituto da continuidade delitiva na dosimetria da pena pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Prevista no artigo 71 do Código Penal, a continuidade delitiva foi concebida com a função de racionalizar a punição de condutas que, embora praticadas de forma independente, estejam inseridas em um mesmo contexto delitivo. A aplicação desse instituto pressupõe a existência de ações praticadas em idênticas condições de tempo, lugar e modo de execução (requisitos objetivos), além de uma unidade de desígnios entre os delitos cometidos (requisito subjetivo).
Número de infrações para cálculo da pena
Nos casos em que a Justiça reconhece a continuidade delitiva, o aumento da pena é determinado pelo número de crimes cometidos, dentro do intervalo legal de 1/6 a 2/3.
A jurisprudência do STJ estabeleceu que se aplica a fração de 1/6 para a prática de duas infrações, 1/5 para três, 1/4 para quatro, 1/3 para cinco, 1/2 para seis e 2/3 para sete ou mais infrações.
Esse parâmetro foi utilizado pela Quinta Turma no julgamento do HC 989.487. No caso, relatado pelo ministro Ribeiro Dantas, uma mulher foi condenada a quatro anos, seis meses e 13 dias pela prática de 11 furtos. Na terceira fase da dosimetria da pena, foi reconhecida a continuidade delitiva e aplicada a fração de 2/3 de aumento.
Para a defesa, teria havido ilegalidade na escolha da fração de aumento da pena, a qual se baseou tão somente na quantidade de furtos, sem qualquer outra fundamentação.
Ao indeferir o pedido de habeas corpus para rever a pena, o relator ressaltou que o aumento em 2/3 estava conforme a jurisprudência do STJ, que também se baseia na quantidade de infrações cometidas.
Majoração máxima para casos de estupro de vulnerável
Nos crimes de estupro de vulnerável, a Terceira Seção fixou a tese segundo a qual “é possível a aplicação da fração máxima de majoração prevista no artigo 71, caput, do Código Penal, ainda que não haja a delimitação precisa do número de atos sexuais praticados, desde que o longo período de tempo e a recorrência das condutas permita concluir que houve sete ou mais repetições”.
O entendimento foi consolidado sob a sistemática dos recursos repetitivos, no julgamento do Tema 1.202. A relatora, ministra Laurita Vaz (aposentada), comentou que, nesse tipo de crime, a proximidade que geralmente existe entre o agressor e a vítima, bem como a reduzida capacidade de reação por parte desta última, favorecem a repetição do delito e dificultam a quantificação precisa das ocorrências.
“Nessas hipóteses, a vítima, completamente subjugada e objetificada, não possui sequer condições de quantificar quantas vezes foi violentada. A violência contra ela deixou de ser um fato extraordinário, convertendo-se no modo cotidiano de vida que lhe foi imposto”, declarou a magistrada.
Intervalo de 30 dias é parâmetro para caracterizar o ##crime continuado##
Ainda que estejam presentes outros requisitos para caracterizar a continuidade delitiva, o espaço de tempo superior a 30 dias entre as condutas criminosas pode afastar a aplicação do instituto na dosimetria da pena.
Em julgamento sob segredo de justiça, no qual foi relator o ministro Sebastião Reis Júnior, a Sexta Turma afastou a aplicação da continuidade delitiva e condenou um pai por abusar sexualmente da filha quando ela tinha 11 anos e, depois, aos 14 anos, mediante grave ameaça.
Ministro Sebastião Reis Júnior
No caso julgado, o relator entendeu que o intervalo de pelo menos dois anos e cinco meses entre os crimes era muito amplo, razão pela qual afastou a continuidade delitiva.
Crimes podem ser praticados em municípios próximos
A repetição da prática criminosa em municípios próximos não impede a aplicação do instituto. Essa interpretação levou a Quinta Turma, no julgamento do REsp 1.849.857, a manter a continuidade delitiva em um caso de tráfico de drogas.
Na hipótese em análise, o acusado respondia por dois envolvimentos no crime, os quais ocorreram em semelhantes condições de execução e tempo, mas em municípios distintos. Ele teria traficado crack nas cidades de Santo Antônio da Patrulha e Terra de Areia, na microrregião de Osório (RS), na mesorregião de Porto Alegre. Os delitos foram cometidos no decorrer do ano de 2010.
Para o relator do caso, ministro Ribeiro Dantas, a decisão do tribunal local, ao aplicar a continuidade delitiva, não destoou da jurisprudência do STJ. Segundo ele, a corte superior “já se manifestou no sentido da não exigência de que as condutas delituosas sejam praticadas no mesmo município para o reconhecimento do crime continuado, admitindo-se a continuidade delitiva quando os crimes ocorrem em municípios próximos, como na hipótese”.
Crimes devem fazer parte de um mesmo plano
No entanto, a falta de unidade de desígnios entre dois crimes cometidos pelo mesmo agente afasta a continuidade delitiva. Essa posição foi adotada pela Quinta Turma no julgamento do HC 936.829, para manter a aplicação do concurso material em detrimento da continuidade delitiva em dois furtos praticados por um só réu no mesmo local: um durante a noite e o outro, com arrombamento, durante o dia.
A relatora, ministra Daniela Teixeira, considerou a conclusão do tribunal estadual de que a conduta posterior não foi um simples desdobramento da primeira, e sim reiteração delitiva, caracterizando-se a habitualidade criminosa, pois os crimes tiveram modos de execução diferentes e não foram praticados sob um mesmo plano.
De acordo com a ministra, a jurisprudência do STJ “é no sentido de que a habitualidade e a reiteração delitivas impedem o reconhecimento do crime continuado”.
Institutos da pena-base e da continuidade delitiva são distintos
Segundo a Sexta Turma, é pacífica a distinção entre os institutos da continuidade delitiva e da pena-base, pois, ainda que haja a necessidade de valoração das mesmas circunstâncias judiciais, cada crime permanece independente na cadeia delitiva, havendo dosimetrias distintas para cada evento.
Esse entendimento foi aplicado para denegar o HC 301.882, impetrado em favor de um réu condenado a 30 anos de reclusão, em concurso material, por dois homicídios duplamente qualificados com decapitação e esquartejamento das vítimas. O tribunal local reconheceu o crime continuado, bem como considerou a culpabilidade, o modus operandi, os motivos e as circunstâncias dos delitos, além da conduta social do réu, e não alterou a pena final, pois aplicou o aumento pela continuidade delitiva para dobrar a pena de 15 anos, nos termos do artigo 71, parágrafo único, do Código Penal.
A defesa alegou que foi desproporcional a aplicação da fração de 1/2 para a continuidade delitiva pelo tribunal estadual e requereu a fração de 1/6. Conforme argumentou, teria havido reformatio in pejus na condenação, pois foram valoradas negativamente para a aplicação da continuidade delitiva condições que não haviam sido consideradas na fixação da pena-base.
Para o relator do caso, ministro Antonio Saldanha Palheiro, não houve nova valoração das circunstâncias judiciais na primeira fase da dosimetria da pena, mas apenas o apontamento de elementos concretos para fundamentar o patamar aplicado em razão da continuidade delitiva.
“É assente que a distinção entre os institutos da pena-base e da continuidade delitiva permite, inclusive, a valoração da mesma circunstância fática sob dois aspectos distintos, sem infringência ao princípio do ne bis in idem“, afirmou. O ministro verificou que, no caso, o juízo de primeiro grau considerou, ao dosar a pena, as mesmas vetoriais trazidas pelo tribunal estadual na condenação.