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obras para conhecer David Lynch, por ordem de estranheza

David Lynch fumando ao lado de uma vaca durante a campanha para Oscar de Laura Dern, em 2007.

David Lynch, um dos que mais desafiou as convenções da arte e do cinema americano, faleceu nesta quinta-feira (16), deixando um legado excêntrico. Conhecido por sua abordagem única à narrativa, Lynch transcendeu as fronteiras da tela, sendo também pintor, músico e escritor.

Sua arte sempre foi marcada por um interesse profundo pelo surrealismo, pela exploração da psique humana e pela estética do bizarro. Com uma carreira que abrangeu filmes, séries de TV e até exposições de arte (O Ar Está em Chamas, Paris, 2007), ele se tornou uma figura que questiona e desconstrói a realidade com uma peculiaridade única.

 
 
   

Neste artigo, o JORNAL DA PARAÍBA apresenta uma seleção de obras que introduzem o universo do mestre do estranho, organizados em ordem de “estranheza”. Leia mais abaixo.

CIDADES DOS SONHOS (2001)

Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001) conta a história de Betty Elms (Naomi Watts), uma aspirante a atriz que chega a Los Angeles em busca do sonho de Hollywood. Lá, ela conhece uma mulher (Laura Harring) que está se recuperando de um misterioso acidente de carro do qual ela não se lembra nada. À medida que a trama se desenrola, narrativas fragmentadas surgem em uma estrutura não-linear cabalística.

A relação entre Betty e Rita evolui do casual para uma dependência mútua que flerta com a obsessão, sendo comparada por críticos a filmes como Persona (1966), de Ingmar Bergman, e 3 Women (1977), de Robert Altman.

Na drama Lynch insere o desejo lésbico como elemento central para subverter o realismo narrativo, usando o relacionamentos entre as duas personagens como um ponto de ruptura para os diferentes mundos que o diretor constrói.

A dualidade imposta aqui discute temas mais amplos como ilusão e realidade, amor e traição, sonho e realidade, fragmentação e singularidade. A obra é ao mesmo tempo provocante e devastadora, nos convidando a navegar pelas fronteiras do desejo e da perda.

UM CORAÇÃO SELVAGEM (1990)

Um Coração Selvagem (Wild at Heart, 1990) é um romance explosivo e surreal que mistura fantasia e violência. O filme segue Sailor Ripley (Nicolas Cage) e Lula Fortune (Laura Dern), um casal apaixonado que foge da mãe controladora de Lula e dos criminosos contratados para matar Sailor. No entanto, à medida que a trama avança, a euforia dos dois dá lugar ao medo e à desordem.

A obra explora a tensão entre a concretude e a fantasia, com protagonistas que tentam escapar das limitações de suas vidas, apenas para se depararem com desejos inconscientes que gradualmente se transformam em pesadelos.

O filme, com várias referências a O Mágico de Oz, sugere que, mesmo no mundo fantasioso que Sailor e Lula constroem, há uma impossibilidade de se desvencilhar completamente das dores e do caos da realidade.

Ou pior, manifesta como o sonho e o tormento podem coexistir, batalhando, ao mesmo tempo, pelo mesmo espaço dentro de um coração.

VELUDO AZUL (1986)

Veludo Azul (Blue Velvet, 1986) conta a história de Jeffrey Beaumont (Kylie MacLachlan), um jovem universitário que, ao retornar à sua cidade natal para visitar o pai doente, encontra uma orelha humana decepada em um campo. Um zoom para o interior do órgão decepado prenuncia o mergulho de Jefff no desejo e na violência escondidos pela fachada idílica da sua cidade.

O filme é decadente e hedonista: figuras clássicas do thriller noir, como a femme fatale Dorothy Vallens (Isabella Rossellini) e a moralidade ambígua de seu protagonista, são usadas para explorar os contrastes da vida suburbana americana.

Aqui, o abismo entre inocência e perversidade é apontado como um ensejo para a autodescoberta, revelando, contudo, que o desejo, a submissão e o controle podem ser tão frágeis quanto as convenções sociais que os sustentam na surdina.

IMPÉRIO DOS SONHOS (2006)

Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006) é a obra mais experimental e não linear de David Lynch, ampliando ao extremo os limites já pouco convencionais do diretor. O filme acompanha uma atriz de Hollywood (Laura Dern), que assume o papel principal em uma produção supostamente amaldiçoada e, aos poucos, começa a perder a capacidade de distinguir sua própria identidade da personagem que interpreta.

Essa fragmentação narrativa reflete um questionamento do diretor: existe algo autêntico sob os papéis sociais que desempenhamos, ou somos feitos de fragmentos interpretativos? Lynch sugere que esses lugares assumidos na vida cotidiana — como colega de trabalho, filho ou amante — são máscaras e ao mesmoelementos constitutivos, aterrorizantes, da nossa identidade.

Filmado em baixa resolução com uma câmera portátil, o longa também reflete a transição para a era digital trazendo momentos de terror genuíno, que se alternam com cenas cômicas e até metalinguísticas sobre o ato de contar histórias.

Com mais de três horas de duração e realizado sem um roteiro completo, Inland Empire é sua obra mais “Lynchiana”; um pesadelo acordado sobre a performance e a arte de fazer ficções — dentro e fora das telas.

TWIN PEAKS (1990; 1991; 2017)

Twin Peaks é uma série de mistério, terror e surrealismo criada por Mark Frost e David Lynch. Estreou em 1990 na ABC, com duas temporadas, e foi cancelada em 1991. Em 2017, retornou com uma terceira temporada, intitulada Twin Peaks: The Return, exibida pela Showtime.

Ambientada na fictícia cidade de Twin Peaks, a história segue o agente especial do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) investigando o assassinato de Laura Palmer (Sheryl Lee). Com elementos de ficção policial, horror e melodrama, a série se destaca pelo surrealismo, cinematografia marcante e humor peculiar.

Desde sua primeira versão, Twin Peaks explora a dualidade entre o mito da América conservadora e a realidade sombria que ela: a de abuso; individualismo tóxico e violência. Já em The Return, Lynch amplia a visão para o declínio moral e social dos Estados Unidos ao longo de três décadas.

A série não oferece respostas definitivas ao público: ela convida a observar o fracasso das instituições em lidar com traumas sociais — mostrando uma América corroída pela violência sistêmica e pela obsessão, quase nostálgica, por uma pureza que nunca existiu.

(Matéria em atualização).