O povo contra a democracia. Como as democracias morrem. São os títulos de dois livros de grande sucesso comercial lançados antes da pandemia.
O primeiro, de Yascha Mounk. O segundo, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt. Em resumo, dão conta das democracias ameaçadas pela ascensão da extrema-direita.
Os dois livros são do tempo em que Donald Trump cumpria seu primeiro mandato como presidente dos Estados Unidos, e o Brasil era governado por Jair Bolsonaro.
O povo contra a democracia. Como as democracias morrem. Lembrei deles na madrugada desta quarta-feira, seis de novembro de 2024, enquanto testemunhava a vitória do republicano Donald Trump sobre a democrata Kamala Harris.
Os Estados Unidos se autodenominam a maior democracia do mundo. A síntese da eleição de 2024 pode ser a seguinte: a maior democracia do mundo deu um novo mandato a quem atentou contra a maior democracia do mundo.
No século XX, os Estados Unidos deram o jazz ao mundo. Criado pelo pretos, o jazz é a mais rico de todos os modos de se fazer música popular.
No século XX, os Estados Unidos deram o western ao mundo. Criado em Hollywood, o western é um gênero de filmes que se debruça sobre a construção da América e mostra como seu deu o seu processo civilizatório no século XIX.
Os Estados Unidos que deram o jazz e o western ao mundo também deram Donald Trump, esse fenômeno político gestado num contexto histórico de recrudescimento das forças mais reacionárias da extrema-direita internacional.
Em 1980, os progressistas do mundo temiam a vitória do republicano Ronald Reagan sobre o democrata Jimmy Carter. No ano 2000, os progressistas do mundo temiam a vitória do republicano George W. Bush sobre o democrata Al Gore.
Venceu Reagan, que teve dois mandatos. Venceu Bush filho, que também teve dois mandatos. Comandaram a maior economia e o maior poder bélico do mundo como os republicanos costumam fazer. Sem sustos. Sem surpresas.
Ronald Reagan e George W. Bush são o normal do jogo político. Donald Trump não é o normal do jogo político. Donald Trump é o pós, pós tudo.
Há 10 anos, conheci uma garota pobre, que morava na periferia, ganhava salário mínimo e fazia faculdade à noite com o dinheiro de um programa do PT.
Na rede social, a garota dizia algo sobre ideologia política e se classificava como de direita. Vi nela um pequeno símbolo do que estava por pipocar mundo afora.
Em suas bolhas, o campo democrático é teimoso e arrogante e tanto custa a admitir o que está ocorrendo quanto não reconhece que perdeu o bonde e que necessita de reinvenção.
Em 2016, Fernando Henrique Cardoso dizia que Donald Trump não seria eleito presidente dos Estados Unidos porque era histriônico demais. Em 2017, Lula dizia que Jair Bolsonaro não seria eleito presidente do Brasil porque era reacionário demais.
Donald Trump venceu nos Estados Unidos de 2016. Jair Bolsonaro venceu no Brasil de 2018. Vimos, como vimos Javier Milei vencer na Argentina de 2023.
Nos Estados Unidos, os presidentes que não são reeleitos costumam sair de cena. Não faz tanto tempo, vimos com Jimmy Carter, em 1980, e com Bush pai, em 1992.
Com Donald Trump foi diferente. Derrotado por Joe Biden em 2020, Trump voltou e venceu uma eleição que deixou arranhados os institutos de pesquisa americanos. As urnas mostraram que não havia empate técnico algum entre Trump e Kamala.
Não vou derramar lágrimas por Kamala Harris. A vitória dela era importante e necessária porque era a vitória das forças democráticas. Mas o seu apoio incondicional ao genocídio ora cometido por Benjamin Netanyahu em Gaza e no Líbano é uma lástima.
Também não vou derramar lágrimas pelo povo americano. O fato é que Donald Trump foi democraticamente eleito a despeito de todos os absurdos que diz e comete.
O povo tem o governo que merece. Todos lembram dessa frase. Aos 78 anos, Donald Trump reconquistou a Casa Branca, e os americanos, que lhe deram um cheque em branco, terão o governo que merecem. Melhor pensar no Brasil, que 2026 vem aí.