DownloadRenderização tridimensional a partir da tomografia do crânio do Luzio (crédito: André Strauss/MAE-USP)
Estudo divulgado nesta segunda-feira (31/07) na revista Nature Ecology & Evolution revela que Luzio, o esqueleto humano mais antigo identificado no Estado de São Paulo, descende da mesma população ancestral que povoou a América há 16 mil anos e deu origem a todas as populações indígenas atuais, como os tupi. A pesquisa, que compilou o maior conjunto de dados genômicos arqueológicos brasileiros, ajuda ainda a desvendar como desapareceram as comunidades mais antigas do litoral, responsáveis pela construção dos sambaquis – enormes montes de conchas e ossos de peixes intencionalmente erguidos na costa brasileira e usados como habitações, cemitérios e demarcação territorial, que são ícones da arqueologia nacional.
“Depois das civilizações andinas, os sambaquis da costa atlântica brasileira são o fenômeno humano de maior densidade demográfica da América do Sul pré-colonial”, afirma André Menezes Strauss, arqueólogo do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador sênior do estudo, cujo primeiro autor é o pesquisador Tiago Ferraz. “Eles foram os ‘reis da costa’ por milhares e milhares de anos e sumiram de forma repentina há cerca de 2 mil anos.”
O estudo, que contou com apoio da FAPESP e a colaboração de pesquisadores do Senckenberg Centre for Hu-man Evolution and Palaeoenvironment da Universidade de Tübingen (Alemanha), baseou-se na extração do genoma de 34 amostras de quatro regiões diferentes da costa leste do Brasil, com até 10 mil anos de idade, entre sambaquis e outros fósseis dos sítios Cabeçuda, Capelinha, Cubatão, Limão, Jabuticabeira II, Palmeiras Xingu, Pedra do Alexandre e Vau Una.
Entre esse material está Luzio, o esqueleto mais antigo de São Paulo, encontrado no Vale do Rio Ribeira de Iguape pela equipe de Levy Figuti, professor do MAE-USP, no sambaqui ribeirinho Capelinha. Por sua morfologia craniana semelhante à de Luzia (fóssil humano mais antigo da América do Sul, com cerca de 13 mil anos), pesquisadores acreditavam que ele pudesse pertencer a uma população biologicamente diferente dos indígenas atuais (ameríndios), que teriam ocupado o Brasil há cerca de 14 mil anos. Não é o caso.
“A genética mostra que Luzio é um ameríndio, assim como um tupi, um quéchua ou um cherokee”, afirma Strauss. “Isso não quer dizer que sejam iguais, mas que, em uma perspectiva global, todos derivam de uma única leva migratória, que chegou à América há não mais de 16 mil anos e, se houve uma outra população por aqui 30 mil anos atrás, ela não deixou descendentes entre esses grupos.”
O DNA de Luzio esclareceu ainda uma outra dúvida: considerado um sambaqui fluvial, ele não é semelhante aos exemplares da costa e, portanto, não pode ser considerado um ancestral direto dos grandes sambaquis clássicos que apareceram na sequência. Essa descoberta indica que, desde muito cedo, houve duas movimentações distintas, com um grupo pelo interior e outro, pela costa.
O que aconteceu com os povos sambaquieiros?
O material genético extraído revela comunidades diversas que, apesar de compartilharem semelhanças culturais, não representavam uma única população do ponto de vista biológico. Havia diferenças principalmente entre os grupos da costa sul e da costa sudeste.
“Estudos dos anos 2000 com morfologia craniana já indicavam uma diferença sutil entre essas comunidades e, agora, os dados genéticos trazem essa confirmação”, diz Strauss. “Identificamos que uma das causas para isso é o fato de essas populações costeiras não estarem isoladas na costa, mas ‘trocando genes’ com outras do interior e, ao longo dos milhares de anos, esse processo deve ter contribuído para as diferenciações regionais dos sambaquis.”
Sobre o mistério do desaparecimento dessa civilização costeira, composta pelos primeiros caçadores-coletores do Holoceno, as amostras de DNA são claras: ao contrário do que ocorreu no Neolítico europeu, quando houve um processo de substituição populacional total, o que se viu por aqui foi uma mudança de práticas, com o declínio da construção de sambaquis com conchas e a introdução da cerâmica, entre os próprios sambaquieiros. Isso porque o material genético encontrado no sítio mais emblemático da época, o Galheta IV, em Santa Catarina, que já não apresenta restos de conchas, mas de cerâmica, é semelhante ao dos sambaquis clássicos.
“Essa informação é compatível com um estudo de 2014, que analisou as cerâmicas dos sambaquis e constatou que elas não eram usadas para cozinhar vegetais domesticados, mas peixe, ou seja, houve a apropriação de uma tecnologia do interior para processar alimentos que já estavam tradicionalmente ali”, explica Strauss.