evento debate riscos e vantagens da IA no Judiciário

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) realizou, nesta terça-feira (4), o II Encontro com Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais sobre Admissibilidade de Recursos Dirigidos aos Tribunais Superiores. O evento abordou a regulamentação e o uso de recursos de inteligência artificial (IA) no Sistema de Justiça, promovendo um diálogo institucional aprofundado sobre o tema.

Ao longo da manhã, cinco painéis discutiram os marcos regulatórios estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e os riscos e as vantagens da IA; e apresentaram sistemas e automações já utilizados na análise de admissibilidade de recursos especiais em tribunais de diferentes regiões do país.​​​​​​​​​

Os ministros Luis Felipe Salomão, vice-presidente, e Herman Benjamin, presidente do STJ, na abertura do evento.

Ao abrir o encontro, o presidente do STJ, ministro Herman Benjamin, afirmou que a IA é uma tecnologia em ascensão, ainda em estágio inicial, que exige cautela em sua aplicação. Segundo o ministro, embora o uso da IA na análise de mérito ainda seja uma perspectiva distante, ela já se mostra valiosa e atual para o exame de admissibilidade de recursos e para o tratamento de matérias repetitivas no âmbito judicial.

O ministro Luis Felipe Salomão, vice-presidente do STJ e corregedor-geral da Justiça Federal, observou que o uso de tecnologia já faz parte da rotina do Poder Judiciário. Com base em pesquisa divulgada pelo CNJ no mês passado, ele mencionou que ferramentas de IA generativa já são empregadas em mais de 45% dos tribunais brasileiros.

Nesse cenário, Salomão apontou três grandes desafios diante do avanço tecnológico: aprimorar continuamente a atividade jurisdicional, especialmente no exame de admissibilidade dos recursos especiais; estabelecer padrões seguros, éticos e transparentes para o uso das novas tecnologias; e integrar essas duas frentes, “permitindo avançar na qualidade e no desempenho do juízo de admissibilidade do recurso especial pelos tribunais de segunda instância a partir do uso responsável da tecnologia, seja por meio da inteligência artificial, seja por outras formas de automação”.

A íntegra dos debates está disponível no canal do STJ no YouTube. Clique na imagem para assistir:


 


Transparência, auditabilidade e supervisão humana devem orientar uso da IA

No primeiro painel, a juíza federal Daniela Madeira, presidente do Comitê Nacional de Inteligência Artificial do Judiciário, tratou da regulamentação da IA conforme as diretrizes do CNJ. Ela realçou benefícios já observados com a adoção da IA, como agilidade processual, redução do tempo de tramitação, otimização de tarefas repetitivas e diminuição de custos operacionais.

Contudo, a magistrada ressaltou que o uso da IA ainda envolve riscos que demandam atenção e controle, como a escassez de profissionais qualificados, questões de privacidade e segurança dos dados e a possibilidade de vieses discriminatórios. Para ela, tais desafios tornam indispensável a adoção de diretrizes claras de transparência, auditabilidade e supervisão humana, que devem nortear o uso da tecnologia no Judiciário.

Em sintonia com essa preocupação, o advogado e professor Dierle Nunes aprofundou, no segundo painel, o debate sobre o uso desordenado, individualizado e oculto da IA. Ele alertou que a ausência de supervisão e políticas claras pode gerar consequências graves, destacando que a IA generativa tende a “alucinar”, isto é, produzir informações falsas ou inventadas quando carece de dados suficientes.

De acordo com o professor, o uso responsável da IA exige domínio técnico e compreensão de seus fundamentos, muito além do simples aprendizado de comandos ou prompts. A literacia digital, explicou, deve abranger conhecimento sobre o funcionamento dos modelos de base, ajustes de parâmetros e métodos de treinamento aplicáveis a contextos de alto risco. Ele advertiu que, sem isso, o uso indiscriminado da tecnologia pode levar à “erosão ética”, quando o operador passa a confiar excessivamente na máquina e reduz sua capacidade crítica.

“O produto precisa contar com controle, monitoramento e governança, caso contrário, não funcionará adequadamente. Isso porque o uso automatizado da inteligência artificial envolve uma série de riscos. Estamos criando algo cujo funcionamento e alcance ainda não compreendemos plenamente, e sobre o qual ainda não temos total controle”, afirmou.​​​​​​​​​

O encontro, na sede do STJ, reuniu magistrados e outros especialistas em um grande diálogo sobre o uso da inteligência artificial no Sistema de Justiça.

Ferramentas de IA que otimizam o trabalho do STF e do STJ

O supervisor do Núcleo de Inteligência Artificial e Ciência de Dados do Supremo Tribunal Federal (STF), Lucas José Gonçalves Freitas, apresentou as ferramentas de IA atualmente utilizadas pela corte suprema: Victor, VitórIA e Maria.

Segundo ele, o Victor atua como classificador de temas de repercussão geral, analisando o texto da petição inicial e do recurso para sugerir sua correspondência com temas já reconhecidos pelo tribunal. Já a VitórIA, inspirada em tecnologia desenvolvida no STJ, forma grupos de processos semelhantes e identifica novos temas de repercussão geral. O supervisor frisou que, embora não opere de forma autônoma, a ferramenta organiza informações que subsidiam a atuação humana na formulação das propostas enviadas à presidência do STF.

Freitas também apresentou a Maria, a mais recente das plataformas, capaz de gerar ementas e relatórios, realizar pesquisas de jurisprudência, corrigir textos e recuperar informações em documentos.

O assessor-chefe da Assessoria de Inteligência Artificial do STJ, Montgomery Muniz, falou sobre o STJLogos, ferramenta de IA generativa desenvolvida pelo tribunal. Ele destacou que, desde o início do projeto, assegurar a supervisão humana foi prioridade, o que motivou ações de capacitação e conscientização que formaram mais de 1.500 servidores aptos a revisar e validar as respostas da ferramenta, prevenindo decisões automatizadas.

Muniz esclareceu que o sistema representa um avanço em relação às soluções anteriores, pois permite interação direta com peças processuais por meio de um chat jurídico. Além disso, o assessor-chefe informou que a ferramenta identifica pedidos e fundamentos nos autos, auxiliando na elaboração de decisões, ainda que isso exija conferência humana. Para ele, esse tipo de interação “trouxe a IA para o centro da atividade judicial, superando o tabu de utilizá-la na confecção de minutas”.

Utilização dos dados de forma eficiente

No último painel da manhã, os juízes auxiliares da presidência do CNJ Dorotheo Barbosa Neto e Adriano da Silva Araújo ressaltaram a importância do uso estratégico e eficiente dos dados no Poder Judiciário.

Dorotheo Barbosa Neto observou que não há falta de dados, mas o desafio está em como utilizá-los de forma eficiente. Ele lembrou que, em 2020, o CNJ iniciou um amplo processo de coleta e integração de informações processuais de todos os tribunais, em um projeto inicialmente denominado Codex, responsável por extrair dados básicos de cada processo – como partes, classe e movimentações processuais.

Os juízes apontaram que, com a evolução do projeto, passou-se também à extração de peças e documentos processuais, o que levou à criação do Data Lake do Poder Judiciário, um repositório que já reúne 373 milhões de processos. De acordo com os magistrados, o objetivo é alimentar sistemas de IA com dados amplos e diversificados, reduzindo o risco de alucinações e vieses, além de aprimorar a análise de admissibilidade de recursos por meio da identificação automatizada de precedentes qualificados.

No período da tarde, o evento foi reservado aos convidados, que discutiram o uso da tecnologia no juízo de viabilidade recursal em Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais, promovendo intercâmbio de boas práticas, apresentação de iniciativas inovadoras e debate sobre estratégias para aprimorar essa relevante atividade jurisdicional.