No rastro firme dos 100 anos de Elizabeth Teixeira

Uma casa simples no coração de Cruz das Armas guarda alguns mistérios. Na rua, pequenas outras casas com portões baixos, quase todas iguais, mostram que estão ali há um tempo. Há silêncio na rua, contudo se escuta um som alto de carro tocando um brega qualquer. Vizinhos fofocam na porta, nem parece que é a capital. Longe da muvuca de João Pessoa, encontramos uma senhora que gostava de fazer feira no Mercado Público do bairro e que frequenta as missas, sempre as primeiras do dia, na Igreja São José Operário.

Devota de Nossa Senhora, que ela chama de Santa Mãe, Elizabeth Teixeira comemora nesta quinta-feira, 13 de fevereiro, 100 anos de história. Em um quintal com muitas galinhas e alguns pés de goiaba, ela conta ao JORNAL DA PARAÍBA que está feliz, mas que sente muitas dores. “Dor, dor na cabeça e em tudo”, declara logo quando chegamos.

Elizabeth Teixeira, símbolo da resistência camponesa, comemora 100 anos de história. Lara Brito/Jornal da Paraíba

É verdade que talvez alguns lutos se acumularam ao longo de um século. Quando Elizabeth nasceu, a Via Láctea acabara de ser descoberta. Sapé, a cidade onde ela nasceu, na Mata Paraibana, foi oficialmente fundada somente alguns meses após ela vir ao mundo. Há 100 anos, éramos outros brasileiros. E muitas das coisas que mudaram tiveram, em parte, sua marca.

“Ela assistiu quase tudo. Às vezes, é sonho. Às vezes, é lamúria”, diz Anatilde Teixeira, filha mais nova que mora e cuida de Elizabeth atualmente.

Mãos que escreveram a história da luta camponesa no Brasil. Lara Brito/Jornal da Paraíba

Em 1925, o Brasil vivia um período de instabilidade política e movimentos tenentistas, como a Coluna Prestes, que percorreu o país até 1927, questionando o governo central. A Paraíba era governada por João Suassuna e a economia do estado baseava-se principalmente na agricultura, com destaque para a cana-de-açúcar e o algodão.

A sociedade paraibana era predominantemente rural, com profundas desigualdades sociais e acesso limitado à educação, especialmente para mulheres. Elizabeth, filha mais velha de nove irmãos, teve educação formal restrita, alcançando apenas o segundo ano primário, refletindo as limitações educacionais da época.

Apesar disso, levava uma vida um pouco mais privilegiada do que as mulheres da sua idade. Vinda de uma família de pequenos proprietários de terra, seu caminho natural não seria o da militância, mas sua relação com João Pedro Teixeira a levou para essa realidade.

Ao se casar com um trabalhador rural negro e sem posses, ela rompeu com o destino que sua família esperava para ela. A partir de então, não apenas acompanhou a luta dele, mas assumiu um papel ativo nas Ligas Camponesas.

João Pedro Teixeira e seus filhos. Foto: Arquivo/Memorial das Ligas Camponesas

“Fui feliz”

O Brasil, nos anos 1950 e início dos anos 1960, vivia um período de efervescência política e social, e a questão agrária estava no centro das tensões. A concentração de terras era extrema, com grande parte da população rural vivendo em condições de exploração, sem posse e sujeitos a violências impostas pelos latifundiários.

As Ligas Camponesas surgiram como uma organização de trabalhadores rurais que reivindicavam melhores condições de vida através da reforma agrária. O movimento ganhou força especialmente em Sapé, onde Elizabeth e João Pedro Teixeira trabalhavam. Em pouco tempo, a liga do município já reunia mais de 15 mil trabalhadores rurais, tornando-se uma das mais fortes do país.

Elizabeth Teixeira e seus filhos em Cabra Marcado para Morrer (1984): marcados pela ausência e pela memória de uma luta que os atravessou. Reprodução

A repressão ao movimento também foi intensa. Latifundiários, aliados ao Estado e às forças militares, atacavam as Ligas com violência. Assassinatos eram comuns, e a luta camponesa era criminalizada.

Após o assassinato de João Pedro Teixeira em 2 de abril de 1962 – um crime encomendado pelo Grupo Várzea, comandado por Agnaldo Veloso Borges –, Elizabeth assumiu a liderança da Liga Camponesa de Sapé. Seu protagonismo marcou uma mudança na organização do movimento, pois trouxe mais mulheres para a luta.

“A minha luta? Sim, era na terra. É na terra, trabalhando na terra, tomando o conteúdo da lavoura. Com mulher, plantavam. E passou esses anos todos, esses anos todos e ainda a gente não teve a reforma agrária”, conta ao JORNAL DA PARAÍBA, tentando juntar as palavras que foram se perdendo na memória ao longo dos anos.

Sua existência foi marcada por cortes bruscos e sucessivos. Depois do assassinato de seu marido, que levou a estabilidade de um projeto de vida, veio 1964. O país foi dilacerado pela ditadura militar, e com ele, sua vida também: foi perseguida, presa e precisou fugir. Deixou para trás os filhos, a terra e a identidade, vivendo por 17 anos no Rio Grande do Norte como Marta Maria da Costa – longe da luta organizada, enterrada viva.

Mas assim como o cinema, a vida tem seus cortes e remontagens. Quando Cabra Marcado para Morrer (1984) foi interrompido pela ditadura, sua história ficou suspensa. O filme, dirigido por Eduardo Coutinho, começou a ser rodado para contar a história de João Pedro e da Liga Camponesa.

Com a chegada do regime militar, a produção foi interrompida, os rolos de filme escondidos, e os personagens perseguidos. As gravações foram reiniciadas no início da década de 80 e não só o documentário renasceu. Coutinho refez o caminho interrompido, reencontrando a ativista escondida. Ela pôde retornar a si – deixar Marta, voltar a ser Elizabeth.

Elizabeth Teixeira e seus filhos separados pela repressão, reencontraram-se anos depois diante das câmeras, em um dos momentos mais marcantes do filme de Eduardo Coutinho. Reprodução

Com os lucros do longa, recebeu de Coutinho um presente que guarda até hoje, um dos mais importantes: sua casa em Cruz das Armas. Hoje o chão de azulejos amarelos e o quintal onde cria suas galinhas são mais do que um abrigo — são restituições; costuras possíveis de tantas fissuras.

A retomada da vida implicava a retomada da voz, e assim ela fez. A partir dos anos 80 Elizabeth inicia uma longa jornada de palestras, aulas e colaborações com o Governo do Estado da Paraíba sobre assuntos da luta camponesa e da reforma agrária. Atuou intensamente no Centro de Defesa dos Direitos Humanos e colaborou com publicações voltadas aos direitos das mulheres. O entra e sai da casa era constante: estudantes da federal; companheiros da agroecologia; pesquisadores e amigos; muitos amigos.

“Contava-se um dia em que ela não tinha visita de estudantes. Isso a estimulava muito. Ela estava ainda bem dona de si, bem viva no movimento, que é exatamente quando ela retorna da clandestinidade. Mora em Patos um tempo e depois vem para cá. Toda essa retomada dela de luta acontece nesse período, até agora”, explica Anatilde.

A casa de Elizabeth Teixeira, em Cruz das Armas, João Pessoa: um espaço onde sua história se mantém viva. Lara Brito/Jornal da Paraíba

Era a forma que ela achou de retribuir e também de se ocupar. Acontece que durante os anos escondidas, o processo de perder um pouco de si também culminou com o luto de alguns filhos. Foram onze no total, todos marcados pela separação forçada da mãe após o assassinato de João Pedro.

A grande maioria deles cresceram espalhados pelo Brasil entre parentes e amigos. Criados longe de Elizabeth, cada um carregou marcas distintas da repressão. Muitos conseguiram restabelecer laços. Outros, nem tanto.

Apesar das dores impostas pela opressão, ela não se resignou, mesmo na velhice.

Quando perguntamos se ela é feliz, o rosto se alegra. “Fui feliz”, ela murmura. Quando questionamos quando ela foi mais feliz, a resposta não poderia ser outra. “Com meu marido, no campo”.

Ao longo de 100 anos, um Brasil essencialmente agrário e marcado por grandes latifúndios se encontra agora com um país que hoje, apesar da industrialização e da modernização do campo, tem uma estrutura fundiária praticamente intocada: a concentração de terras permanece, os conflitos seguem violentos, e trabalhadores rurais ainda aguardam o acesso à terra prometido por sucessivos governos. A dívida histórica nunca foi quitada.

Ainda vai acontecer. Ainda vai acontecer porque a terra é boa. São os reformados e os libertos que vão trabalhar; lutar pela terra”, pontua Elizabeth.

Casa onde viveu João Pedro Teixeira foi tombada pelo patrimônio histórico da Paraíba e hoje abriga o Memorial das Ligas Camponesas. Divulgação/Secom-PB

Nem parece que são 100 anos

Há muitos anos vivendo em Cruz das Armas, Elizabeth construiu uma relação próxima com os vizinhos e com a comunidade. “Todos a conhecem e querem muito bem”, conta Anatilde.

No entanto, com o passar do tempo, muitos dos antigos moradores já partiram. “O senhor Eraldo aí da frente já faleceu, o rapaz aqui do lado também, Maria que morava aqui também já faleceu”, relembra. Entre os que ainda permanecem, destaca-se seu Cícero, que tem um barzinho na frente de casa e acompanhou de perto a trajetória de Elizabeth. “Ele assistiu a toda performance. Elizabeth enquanto dona de casa, Elizabeth enquanto lutadora, Elizabeth enquanto é figura, né? Mito, digamos assim.”

Elizabeth Teixeira. Foto: Arquivo / Memorial das Ligas Camponesas. Foto: Arquivo / Memorial das Ligas Camponesas

O tempo passou por Elizabeth sem pedir licença. As vozes que antes preenchiam a rua foram se calando. A ativista permaneceu: viu as janelas fecharem, os jardins secarem, as casas trocarem de dono. O mundo ao redor se desfez em memórias, mas ela continuou como uma testemunha de tudo o que o tempo levou.

Elizabeth aprendeu o desapego não como escolha, mas como condição. Porém, muito ao contrário do desprezo, aqui a palavra significa não se paralisar diante de certas coisas que não se pode mudar. Apegou-se apenas ao instante, porque o resto sempre escorria pelos dias, levando consigo tudo o que já parecia eterno — até mesmo a dor; a distância dos filhos.

Elizabeth Teixeira e sua filha Anatilde. Lara Brito/Jornal da Paraíba

Quando completou 90 anos, foi como se um alerta soasse para todos ao redor. A família começou a perceber suas limitações e a necessidade de mais cautela. Ainda assim, ela se recusava a aceitar essas restrições.

Em um episódio marcante, após fraturar o pé, Elizabeth foi ao médico e recebeu um gesso, mas, em plena madrugada, levantou-se, pegou uma faca e o retirou sozinha. Voltou ao hospital mais duas vezes até, por fim, aceitar que precisaria desacelerar. “Na cabeça dela, ela ainda fazia tudo. Ainda tinha aquela luta interna para não se render ao tempo”, conta a filha.

A rotina passou a exigir mais atenção. “Se tiverem cinco pessoas na casa, as cinco precisam estar de olho nela”, explica. Pela manhã, toma café, recebe banho de sol e, depois, é acomodada para evitar quedas. Apesar das limitações, o espírito inquieto permanece. “Às vezes, quando vou trocá-la, ela diz: Não, não, que eu ainda vou botar, ainda vou tirar. Como se estivesse na rotina de antes”. O tempo avançou, mas Elizabeth, em sua teimosia, continua desafiando os limites impostos.

“Eu não sei se, na natureza do tempo, ela percebe que viveu esse tempo todo, porque às vezes para a gente nem parece que já vai fazer 100 anos”, disse Anatilde Teixeira.

Com os pés no chão, sem pedir permissão, sempre foi assim: “sem precisar de nome, sem bater em portas, sem se curvar”, explica a filha. A ativista fez do próprio caminho um rastro discreto, mas obstinada, e ensinou os seus a fazer o mesmo. “É tanto que agora eu também tenho um pouco de rebeldia”.

Elizabeth nunca teve dúvidas sobre o que fez. Com o tempo, até as verdades que sustentavam a opressão se desfizeram, mas ela permaneceu firme como as raízes que um dia ajudou a plantar.

Em meio às árvores do seu quintal, testemunha um Brasil em transformação — do voto censitário ao sufrágio universal, da enxada ao maquinário, da exploração sem freios ao reconhecimento de sua história como patrimônio vivo. Um país que anda, ainda que por vezes tropece sob o peso das desigualdades que ela conhece tão bem.

A luta não precisa de palco, só de continuidade. E quando perguntamos se valeu a pena, se ainda carrega arrependimentos, Elizabeth sorri com a mesma convicção de antes:

“Eu tô vivendo, minha filha. Gostei da luta pelo campo.

E se arrependeu da luta?

Não. Lutava tudo de novo.